quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Um Pouco de Goethe



Aluno
Quero ficar muito erudito,
Perceber tudo o que há na terra,
E tudo o que no céu se encerra,
Natura e Ciência ao Infinito

Schüler
Ich wünschte rechet gelehrt zu werden
Und möcht gern, was auf der Erden
Und in dem Himmel ist, erfassen,
Die Wissenschaft und die Natur


(Fausto)

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Meu encontro com Giovanni Parlucci

      Há algum tempo viajei para a Itália. Há uns dois anos atrás. Enquanto passeava a beira do lago Maggiore, me sentia uma pouco triste e melancólico. Quis sentar num banco que estava ali perto para observar os cisnes sob o lago. Preparava-me para ir até a pequena casa com uma bela vista para o lago quando se sentou ao meu lado um homem, de chapéu, porte médio e olhos tranquilos, mas um tanto vivos e em alguns momentos um tanto vagos. Tentei conversar com ele em meu péssimo italiano, ele se mostrou cordial, levantou a cabeça e me saudou. Falei sobre as belezas da Itália, ele se mostrou tranquilo, e não muito animado ao falar do assunto, assim mesmo exaltou as belezas italianas. Mostrou-se um homem viajado, conversamos bastante, convidei-o para ir até a casa que tinha alugado, depois de relutar um pouco decidiu me acompanhar, desculpei-me por não oferecer melhores acomodações, ao que riu polidamente. Jantamos, conversamos sobre história, literatura, poesia, perdemos o horário, pegou seu chapéu para ir, mas eu insisti para que dormisse ali aquela noite, coisa de brasileiro. Ele decidiu ficar. Abrimos um Luce Della Vite da Toscana, de uma boa safra, apreciamos o vinho com calma, falamos sobre literatura inglesa e alemã. Terminado o vinho, a hora era alta. Depois de certo tempo avisei que iria descansar um pouco, o homem se deitou. Quando acordei pela manhã, o homem já tinha partido, olhei para a cama onde estava, vi alguns papeis, ele tinha se esquecido, eram uns rabiscos, pareciam poemas, sim, li e vi que eram poemas que me agradaram, falavam da natureza, tinham um tom bucólico e espiritual. Em vão tentei encontrar o homem, andei por toda a costa durante os dois dias perguntando sobre ele, se chamava Giovanni Parlucci, fui a dois restaurantes onde acho que tinha passado, mas apenas um tinha o seu nome em umas das contas, consegui-a com muita insistência com o gerente, soube que ele tinha passado pelo outro através da descrição que fiz, o garçom confirmou-as, mas foi tudo em vão. Enfim, terminei minha turnê pela Itália, ainda passei pela França e finalmente voltei ao Brasil. Procurei por muito tempo Giovanni Parlucci, tentei ver o seu nome em livros de poesias, em vão, nenhuma publicação. Até hoje tenho algumas de suas poesias comigo.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Hora da Minha Vida


Meus olhos se encontram protegidos
Por essas folhas tão verdes, unidas
Nessa tarde já pintada
De cor laranja

Sinto essa tardinha
Sinto chegar a noite
Aproximar-se a placidez
Que aceita o fim da existência

Fim nostálgico
Daquilo que já foi
Começo embevecido
Desse meio infinito
Desejo de que a vida
Parasse nesse instante
Pro meu eterno contemplar
Desse momento

Essa é a hora da poesia
Hora da minha vida


Ao longe contemplo as igrejas
Os sinos que tocam
As folhas que caem
Das cópulas das árvores

O sol a se pôr
E seus raios a me atingir
As cores que já escorrem
Escoando com o fim da tarde
São as que pintam meu mundo.

Giovanni Parlucci

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Providência


Olá.
Hoje resolvi escrever alguma coisa de cunho pessoal nesse diário... aliás o nome desse blog é diário de um teólogo, portanto espera-se que se escreva alguma coisa sobre algo que acontece diariamente com um teólogo.
Deixando de lado as discussões acerca do estatuto do teólogo, ou seja, se ele pode ou não ter fé, digo de entrada que tenho fé, fé não somente como assentimento a alguma proposição ou fato, mas fé religiosa, fé num poder superior e que tudo governa, e creio que esse poder governa a minha vida.
A seguir, vou relatar uma experiencia que para alguns pode ser boba ou mesmo puro acaso para outros, mas que para mim tem significado especial e que só confirma cada vez mais a minha fé numa providência que tem sido cada vez maior.
Muitas vezes, os cristãos começam a enfraquecer em sua fé porque Deus não respondeu alguma oração sua ou pedido. É normal, mas para vocês também conto a experiência que se segue:
Hoje não era um dia tão normal, pois acordei ansioso para comprar dois livros texto do curso de latim que estou fazendo. Pela manhã escrevi alguma coisa, estudei, fiz minha devocional, e a tarde, portanto, me dirigi até a livraria Martins Fontes na Avenida Paulista para adquirir tanto a Gramática quanto o livro de exercícios Reading Latin. Comprei as obras e algum material escolar no cartão de debito. Já lá fora, fiquei raciocinando que não tinha nenhum dinheiro em espécie para comprar alguma comida já que de lá teria que me dirigir à USP, pois tinha uma matéria para fazer a noite, no entanto, como não estava com fome acabei tomando o coletivo em direção à cidade universitária, coletivo esse que espero não tomar tão cedo, o garotinho parece que rodou a cidade todinha.
Chegando na FFLCH me dirigi até à biblioteca para devolver os livros, a essa hora meu estômago já estava enrolando de tanta fome. Fui até a lanchonete do prédio de Letras que aceita cartão, pedi meu lanche, mas na hora de passar o cartão, o rapaz que me atendia disse com um sorriso complacente e para mim decepcionante: “infelizmente não aceitamos cartão de crédito, só débito”. Daí em diante as negativas somente se multiplicaram em todas as lanchonetes adjacentes, até eu desistir de comer. Pensei: “hoje é esperar até chegar em casa”. Agradeci a Deus e me dirigi até a sala de informática do prédio de filosofia e ciências sociais. Escolhi um pc e o liguei, e quando olhei para o chão vi uma nota de dois reais olhando para mim. Também fitei-a com doçura rsrsrs, tomei-a nas mãos, agradeci à Deus e pensei: “o bandejão tá garantido”.
Então vocês me perguntam: “é o fim dessa história boba?”. E eu respondo: “não, o fim se dará no bandejão da química para onde estou me dirigindo agora para jantar!”

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Politês ou Cosmopolita? O que somos?

       O termo grego politês significa originalmente o homem que vivia na polis, na cidade, atuando de forma política, ou seja, de forma social para o bem comum. Por sua vez, cosmopolita é o nome dado ao homem que vive a dimensão da cidade universalmente no mundo, cosmos se refere à economia do mundo, ou seja tudo o que se refere e se dá no mundo, em cosmopolita o politês já não pertence à uma polis específica, a uma cidade como era o caso de Atenas, sua cidade (polis) é o mundo, sua atuação social agora se dá no  mundo.

   
   Hoje vivemos numa tendência mais e mais globalizante, onde as especificidades locais dão lugar a influências de ordem mundial e que acontecem em qualquer lugar do mundo. Diante disso vocês acham que temos lugar para uma vida política (social para o bem comum) que leve em conta as especificidades de onde vivemos ou a cidadania "universal" não nos permite mais isso?

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Características gerais da Filosofia Bizantina

Este brevíssimo artigo tem como objetivo lançar uma primeira luz sobre um assunto tão pouco difundido e conhecido, não somente no Brasil como no exterior, a Filosofia Bizantina.
Nosso propósito aqui não é fornecer uma introdução, mas apenas expor algumas características gerais da filosofia produzida no Império Oriental do século IX a meados do XV.


Essa filosofia é intitulada Bizantina por causa de Bizâncio que foi o primeiro nome da capital do império oriental depois que o Império romano foi dividido por Teodósio I no século IV da era Cristã. Depois o nome da capital mudou para Constantinopla, mas convencionou-se chamar de bizantina toda a história do império do oriente até a queda de Constantinopla em 1204, bem como a filosofia produzida nesse império e nesse período. Portanto, filosofia bizantina é toda a filosofia produzida no império oriental desde o século IX a meados do século XV.
Depois desses esclarecimentos de ordem mais geral passemos a alguns aspectos dessa filosofia que devem ser destacados e que é o objetivo de nosso estudo:
1º. Do século IX à meados do século XV a filosofia é considerada como “helênica”[1], isto é, como estranha. Nesse sentido a Philosophia é tida como “ciência exterior”. A filosofia é a ciência do que está fora (exôthen, thyrathen) e oposta à teologia cristã. Teologia cristã para os bizantinos é a verdadeira filosofia, a “filosofia do interior” ou “filosofia que está dentro”. Em consequência dessa contraposição temos o segundo ponto:
2º. A filosofia tem uma completa autonomia teórica. Isso fica bem claro quando comparamos a filosofia bizantina com a filosofia medieval, a filosofia em Bizâncio não é serva da teologia. Mesmo a lógica não tem o estatuto de instrumento privilegiado da teologia como acontece na filosofia medieval latina do ocidente cristão. No caso da teologia, não há uma ciência teo-lógica, ou seja, uma elaboração dialética e lógica dos conteúdos da fé cristã. Para indicarmos melhor ainda as características da filosofia bizantina temos que saber que também, de forma diversa do mundo latino...
3º. A teologia é puramente monástica e não é ensinada escolarmente, por isso não podemos falar de uma escolástica bizantina. Diferentemente do estatuto que a teologia goza no mundo latino-cristão principalmente nos séculos XIII e XIV, o ensino superior bizantino não tem uma faculdade de teologia, o ensino superior visa apenas formar funcionários.
4º. O ensino da filosofia mesmo que institucionalizado pelo poder, é ainda um prolongamento de um ensino privado, além de ser quantitativamente modesto.
5º. O modelo do filósofo bizantino é o do “enciclopedista”. A filosofia é mais orientada para as disciplinas positivas (o quadrivium dos latinos) do que para a metafísica. Por consequência, o filósofo é um bom erudito capaz de ensinar a maior variedade possível de assuntos.
Enfim, a filosofia bizantina tem um perfil original próprio característico do império do Oriente que deve ser analisado com cuidado. É o que faremos em futuros artigos. Por enquanto esperamos que esta breve exposição nos ajude a abordar a compreensão do fenômeno filosófico em Bizâncio.



Bibliografia Consultada
LIBERA, Alain De. A filosofia medieval. Tradução Nicolás Nyimi Campanário; Yvone Maria de campos Teixeira da Silva. São Paulo: Edições Loyola, 1998


[1] Fique bem claro aqui a diferenciação entre helenismo concebido como o conjunto cultural herdado do mundo grego pelo império romano, e que começou a se propagar a partir das conquistas de Alexandre o Grande, e helenismo como concebido pelo império oriental de orientação cristã, sendo que nesse caso, helenismo é tudo aquilo que não é cristão e é estranho à fé.

sábado, 30 de julho de 2011

O que realmente é Teologia Liberal?

Existem alguns termos que por causa de seu uso constante se tornam corriqueiros, e em muitos casos por causa disso perdem o seu sentido originário, tal é o caso quando falamos de teologia liberal.
Tem sido uma espécie de “coqueluche”. No meio acadêmico, mas não somente nele, nas igrejas, nas revistas de escola bíblica, em livros evangélicos populares, em conversas em geral, nas discussões em redes sociais e até em conversas de boteco, o termo “teologia liberal” tem sido pródigo, e sai com uma facilidade de nossas bocas como uma fonte transbordante ou uma chave que “abre” a compreensão para tudo aquilo que não é ortodoxia. Enfim, seu significado fundamental nesses contextos é de heresia, mesmo quem se diz teólogo liberal hoje, não tem problema nenhum em ser chamado de “herege”. Aliás, o que em muitos casos se tornou um elogio, em outros simplesmente quer dizer que a pessoa apenas não concorda com os costumes de uma igreja, a forma de anuncio, do conceito ou a forma como alguns dogmas são interpretados.
Mas o que realmente quero dizer por teologia liberal? Qual era o contexto onde o conceito nasceu? Quem o usou pela primeira vez e em que sentido? É um conceito teorético ou historiográfico? Estas são apenas algumas indagações que nos conduzirão ao entendimento do que realmente possa ser teologia liberal e se seu uso ainda pode ser aplicado hoje. Se pode em que sentido?
Em nossa breve reflexão trabalharemos a teologia liberal nas duas formas em que pode ser entendida. Como conceito teorético, e nesse caso ainda podemos falar em teologia liberal ou teólogos liberais hoje, e como categoria historiográfica, nesse caso, veremos que foi um movimento restrito à determinada época histórica com seus conceitos básicos fixados e pertencentes à determinados à um tempo definido. As outras três perguntas: “Mas o que realmente quero dizer por teologia liberal? Qual era o contexto onde o conceito nasceu? Quem o usou pela primeira vez e em que sentido?” serão respondidas de acordo com a análise das categorias teorética e historiográfica.
O termo liberalis teologia[1] encontra-se pela primeira vez no teólogo de Halle, Johann Salomo Semler (1725-1791). Com o termo ele queria designar um livre método de investigação histórico-crítica das fontes da fé e da teologia, que não se sentisse vinculado aos dados posteriores da tradição dogmática.
Nesta definição de Semler encontramos vários elementos que esclarecem em sua base a teologia liberal, mas desejo analisa-los em dois momentos. Vejamos:
Em primeiro lugar essa teologia busca uma liberdade metodológica. Nossa atenção deve se voltar a este fato. A liberdade aqui não significa sair por aí fazendo afirmações quaisquer que venham à cabeça sobre a dogmática. A liberdade é na formulação de um novo método, mesmo o método não é livre em absoluto, pois do contrário não seria método, o que se busca, portanto, é uma libertação do método usado pelos seus antecessores de lhe dar com as fontes da teologia cristã, as Escrituras. Qual seria esse método “opressor”? O dogmático que se valeria da reflexão sistemática e filosófica? No pensar de Semler esse método seria inapropriado para lidar com as Escrituras, não captam a essência e a estrutura das Escrituras, e isso nos leva ao segundo ponto que deve ser notado, o método histórico-crítico que seria o que dá mais liberdade ao investigador para compreender o que em seu entender seriam as fontes da fé a da teologia cristã.
Em relação ao contexto, a teologia liberal nasce do encontro do liberalismo – como autoconsciência da burguesia européia do século XIX – com a teologia protestante. Seus antecedentes históricos se encontram na filosofia da religião de Hegel e na teologia de Schleimacher. “Não é uma escola bem-definida, mas um movimento polimorfo, no qual se podem distinguir diferentes linhas de pensamento” (GIBELLINI, 2002, p. 19).
Entre essas linhas é fundamental a interpretação racionalista do Novo Testamento com Baur, Strauss e Bauer na primeira metade do século XIX. Também foi chamada de teologia liberal a reflexão de Ritschl (1822-1889) e de sua escola, que inclui tanto teólogos sistemáticos como Herrmann, estudiosos do Antigo Testamento como Wellhausen e do Novo como Jülicher, bem como historiadores como Harnack e filósofos da religião como Troeltsch. O órgão de divulgação do grupo era a Revista Christliche Welt (fundada em Berlim em 1877). Essa revista “se propunha encarar os novos problemas do mundo e da sociedade numa perspectiva evangélica e servir de intermediário entre o mundo dos eruditos e os resultados da investigação de uma teologia que se queria crítica” (GIBELLINI, 2002, p. 19). Esse propósito não é novo, os pais da Igreja bem como muitos teólogos em todas as épocas buscaram se fazer entender ao mundo intelectual e erudito de sua época. A diferença entre a teologia liberal e as outras não está centralmente em suas intenções, mas em algumas características gerais que listamos abaixo:
1ª. Assunção rigorosa do método histórico-crítico.
2ª. Relativização da tradição dogmática da Igreja, principalmente a cristologia.
3ª. Leitura predominantemente ética do cristianismo. O otimismo liberal procurava harmonizar o mais possível a religião cristã com a consciência cultural da época.
Para mim o ponto central que diferencia a teologia liberal de outras teologias seria a relativização da dogmática da Igreja bem como da cristologia e a ascensão do método histórico crítico. Esses dois pontos são fundamentais como reviravolta da teologia, já que os dois se baseiam numa postura de crítica livre às Escrituras e rejeição do patrimônio dogmático que seria posterior às Escrituras e estaria baseado num errôneo método de interpretação das Escrituras, em consequência, não teríamos um verdadeiro entendimento do que seria o cristianismo primitivo e a mensagem da Bíblia. No ver de autores como Harnack em A essência do cristianismo, o método dogmático que leva em consideração as categorias filosóficas gregas inseriu um novo conteúdo à mensagem evangélica que lhe era estranho. A relativização da cristologia por sua vez não significava desprezar à Cristo, pelo contrário a alta estima acerca da figura histórica de Jesus conduziu os teólogos ao método crítico de leitura das Escrituras e percebeu que os conteúdos dogmáticos posteriores à Jesus sobre ele não tinham nada a ver com o que realmente os evangelhos mostravam e diziam sobre Jesus e que este pensava de si mesmo. Entretanto, não podemos superestimar o método histórico-crítico e nem o alcance da teologia liberal. Em outro artigo poderemos analisar os pontos fracos da teologia liberal.
Isso é história, na história essa teologia tinha suas posições muito bem definidas, eram baseadas no otimismo em relação à humanidade. Como categoria teorética, podemos extrair algumas idéias teóricas que não estão ligadas necessariamente ao ambiente histórico em que foram fomentadas e, podemos dizer que toda a tentativa teológica que em nome do método histórico crítico e de seus resultados, exige uma revisão dogmática ou relativização da cristologia pode ser entendida como teologia liberal.
Portanto, como categoria historiográfica, não temos mais hoje algo como a teologia liberal. Como movimento histórico ela finda com o final da primeira guerra mundial quando o otimismo liberal de um homem técnica e eticamente bom dá lugar ao pessimismo para com a humanidade. Com o fim da guerra novos modelos de pensamento vão emergir tais como o existencialismo de Heidegger e Sartre, e teólogos como Barth e Bultmann irão produzir uma teologia que leve em consideração a dimensão existencial do homem e irão enfatizar a insuficiência e até mesmo total alienação humana, mas isso é um tema para outra ocasião.


BIBLIOGRAFIA

GIBELLINI, Rosino. A teologia do século XX. 2ª. Edição. Tradução de João Paixão Netto. São Paulo: Loyola, 2002.


[1] O termo é latino, sua tradução é simplesmente teologia liberal.

Processo de abstração em Tomás de Aquino

INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho é procurar conhecer como se dá o processo de abstração em Tomás de Aquino. Para isso, usaremos o texto da Suma de Teologia de são Tomás, especificamente as questões 84 e 85. Usaremos também como fio condutor o artigo de Raul Landim Filho, A Questão do Universal Segundo Tomás de Aquino especificamente o terceiro parágrafo da página 416, onde o autor discorre sobre os modos de abstração em Tomás de Aquino. Veremos se tal posicionamento se sustenta diante da leitura dos textos da Suma de Teologia.
Tomás de Aquino
O PROCESSO DE ABSTRAÇÃO

Para melhor compreender o processo de abstração em são Tomás, logo no artigo 1 (um) da questão 84, se põe a questão se a alma conhece os corpos pelo intelecto. O ato de conhecer os corpos pelo intelecto seria denominado abstração.
Em primeiro lugar devemos proceder algumas distinções, a saber, que a forma está em cada sensível de modo diverso, e este modo é a intensidade, e que a forma sensível está na coisa que está fora da alma de modo diverso de como está no sentido, ou seja, esta afirmação diz em primeiro lugar que existe uma forma sensível, em segundo, que esta forma sensível está em alguma coisa, ou seja, em algum ente (sendo) que está fora da alma. Terceiro, este ente é sensível. Quarto, o modo de como a forma sensível está na coisa é diferente de como esta forma sensível está nos sentidos.
Compreendidas estas distinções, podemos prosseguir:
Porque Tomás distingue entre forma sensível na coisa e forma sensível na alma? A resposta é dada no fato de que os sentidos recebem as formas sensíveis, mas sem a matéria.
A partir disso temos em primeiro lugar uma forma sensível que está na coisa fora da alma, e esta forma está unida a matéria. Depois temos esta mesma forma sensível como é captada pelos sentidos, mas a partir do momento em que ela é captada pelos sentidos ela já é captada apenas como forma sensível sem a matéria.
O intelecto por sua vez que é imaterial, recebe não mais as formas sensíveis, que pertencem aos sentidos e são dotadas de quantidade, mas as formas que são imateriais e neste caso imutáveis. Tomás de Aquino usa o axioma: “o recebido está no recipiente ao modo do recipiente para explicar que a forma sensível (o recebido) é recebida no recipiente (os sentidos) ao modo do recipiente, ou seja, se o recipiente é sensível, a forma sensível será recebida sensívelmente. Até aqui já sabemos que o intelecto conhece o que é da característica intelectual, ou seja, a imaterialidade e a imutabilidade, mas se ele conhece os corpos, certamente ele não os conhece de forma material e mutável, concordado isso, como o intelecto recebe estas formas? Em outras palavras, como poderíamos conhecer as coisas sensíveis por coisas que não tem a ver com o ser (de ordem material) delas, ou seja, o intelecto. Como conhecer o material pelo que não tem a ver com o material?
Aplicando o axioma ao intelecto, podemos dizer que qualquer coisa que cair ao intelecto só pode ser recebida ao modo deste, ou seja, o intelecto que é imaterial e imutável só receberá as espécies (ou formas) de modo imaterial e imutável. Logo, nada sensível pode ser captado pelo intelecto. Desse modo, para Tomás, a alma conhece os corpos pelo intelecto com o conhecimento imaterial, universal e necessário.
Tomás sintetiza toda esta explicação na seguinte proposição: “assim como o sentido conhece apenas o corporal, igualmente o intelecto conhece apenas o imaterial” (q. 84,1, resp ao 2º.).
No artigo segundo, ao colocar a questão se a alma, por sua essência, conhece o que é corporal, Tomás entra definitivamente no processo de abstração ao afirmar que o que é material, ao ser conhecido, existe naquele que conhece de forma imaterial. Mas como isto se dá? Certamente por abstração dos universais dos particulares. Mas para são Tomás chegar nessa conclusão existe um caminho percorrido que explicita o porquê desta conclusão.
  Nós conhecemos o que está fora de nós. Mas o que está fora de nós é material, como pois conhecer o que é material imaterialmente, já que se nós recebessemos a forma somente materialmente não teríamos nisso nenhuma cognoscibilidade? A matéria não deveria ser excluída? Nas palavras de Landim: (p.416) “será possível não excluir a matéria, se o conhecimento começa desde o seu início sensível com a produção... de algo não físico?” Para explicar isto Tomás nos apresenta o seguinte axioma: “quanto mais imaterialmente, porém, algo tem a forma da coisa conhecida, tanto mais perfeitamente conhece” (Q.84, a1, resp). Isso significa dizer que o conhecimento perfeito é o imaterial, ou seja, o inteligível. Dessa forma, o intelecto que é inteligível, conhece mais perfeitamente que os sentidos que apesar de conhecerem as coisas materiais sem a materialidade, as recebem com condições materiais.
No caso dos intelectos, o mais perfeito será aquele que possui menos materialidade. São Tomás nos diz que nem a alma humana, e nem os anjos inteligem por sua essência tudo, pois seus intelectos estão em corpos materiais ou determinados, pois são seres criados, de certo modo por alguma espécie. Somente Deus em sua essência é imaterial e não determinado, pois é criador, dessa feita, conhece por sua essência tudo imaterialmente, pois possui em si todas as coisas de forma imaterial, pois ele é o principio universal de todas as coisas.
Colocado o problema dessa forma, no âmbito das espécies, o artigo 3 levanta o problema de como a alma intelige as coisas. Intelige por espécies introduzidas nela naturalmente? Mas o que são espécies naturais?
A posição da tradição platônica diz que a alma por ser criada inteligível sob espécies (formas) inteligíveis, logo, inteligiria o que é corporal por espécies inteligíveis nela naturalmente introduzidas por Deus. Nesse caso não há abstração, mas rememoração das idéias.
Tomás começa refutando esse posicionamento com a exposição do processo de potência e ato. O intelecto, que a alma se vale para conhecer, pode estar tanto em potência quanto em ato para conhecer, quando está em potência ele está passivo de recepção para as espécies ou formas. O conhecimento em ato não pode ser adquirido somente pelas idéias, pois o que é conhecido naturalmente pelas espécies inteligíveis não poderia ser esquecido, já que o todo é maior que a sua parte, ou seja, se eu tenho o conhecimento das espécies inteligíveis que são o todo, esse conhecimento não poderia ser impedido pela sua parte que lhe é inferior, ou seja, os seus sentidos.
A posição platônica é ainda refutada ao se mostrar que sem determinado sentido não se pode conhecer o que é apreendido por este sentido, neste caso, são Tomás se vale do exemplo das cores, onde sem o sentido da visão, não teríamos o respectivo conhecimento que este sentido proporciona ter que é o das cores. Posição posteriormente retomada por Hume parcialmente.
Se assim se concebe, não podemos conhecer por espécies inteligíveis inseridas naturalmente na alma.
Mas mesmo assim, ainda há o problema se estas espécies, mesmo não estando inseridas naturalmente na alma, podem estar fora da alma que está na matéria, ou seja, estas espécies podem estar em formas separadas de corpos.
O platonismo advoga que as coisas são subsistentes por si sem matéria, e o conhecimento também se daria por participação na idéia da qual coisa sensível que buscamos conhecer participa. O conhecimento por participação se baseia na semelhança que a própria idéia tem em quem está dela participando. Nesse caso, as espécies inteligíveis em nosso intelecto seriam certas semelhanças das idéias, e dessas idéias promanariam ao nosso intelecto.
Esse posicionamento é contra a noção de que as formas das coisas sensíveis subsistem sem as matérias. O posicionamento que advoga a forma separada da matéria é o de Avicena que concebe intelectos separados que conteriam em si as idéias.
Avicena e Platão concordam que as espécies inteligíveis de nosso intelecto advém de formas separadas, mas quanto a sua natureza, Platão advoga que as primeiras subsistem por si, enquanto Avicena diz que elas estão na inteligência agente.
Tomás começa a rechaçar a opinião de Avicena, porque se seguirmos a concepção deste último, não teria razão de ser a união da alma ao corpo, já que se a alma não recebesse as espécies inteligíveis dos sentidos, ele não precisaria do corpo para inteligir. Nesse caso, o corpo seria inútil.
O posicionamento de Avicena, que propõe que os sentidos são necessários à alma para despertá-la para o intelecto agente não tem sentido de ser, pois se a natureza da alma é a de inteligir por espécies provindas do intelecto agente, logo ela poderia se voltar para o intelecto agente sem os sentidos. E ainda mesmo se valer de qualquer sentido para receber uma informação sensível, nesse caso, um cego de nascença poderia por qualquer outro sentido receber informação sobre as cores, o que pela experiência se mostra falso. Fica assim provado que as espécies inteligíveis pelas quais a nossa alma intelige não advém de formas separadas.
Existe um princípio inteligível por essência que é Deus, logo, todas as espécies inteligíveis estão reduzidas a Deus, no entanto, para Tomás, estas espécies procedem de Deus pela mediação das formas das coisas sensíveis e materiais, e destas formas materiais recolheríamos esta ciência.
No artigo seguinte é aventada a hipótese da alma intelectiva conhecer as coisas materiais nas razões eternas. Estas razões eternas seriam a vida por si e as razões por si. Tomás neste ponto se vale da autoridade de Agostinho para sustentar que as razões de todas as criaturas ao invés de existirem em razões eternas independentes existem sim, mas em Deus.
A alma no estado presente não vê tudo nas razões eternas, mas verá no estado de beatitude, quando contemplar a Deus que tem em si as razões eternas. Isso porque a alma humana pode conhecer tudo por participação nas razões eternas, no entanto, no estado presente, pela necessidade de se ter ciência das coisas matérias, é pelo fato de que no estado presente temos a relação com a materialidade dos entes, recebemos as espécies inteligíveis pelas coisas materiais. Se tivéssemos idéias apenas nas razões eternas nós não poderíamos construir uma ciência da natureza, uma física.
Desse modo fica entendido que as idéias existem: na mente divina, existem nas coisas e existem no intelecto angélico e no humano.
Quanto ao modo de recepção, o artigo 6 trata pela primeira vez, especificamente sobre o modo de conhecer a partir dos sensíveis, ou seja, por abstração.
Tomás de Aquino, após expor a concepção de Demócrito que pensou que o conhecimento se dá a partir dos objetos através de imagens e emanações vindas destes objetos, e a oposta de Platão que advoga que por ser o intelecto uma capacidade imaterial não se utiliza do órgão corporal no ato de inteligir, logo conhece por participação nas formas inteligíveis separadas, propõe a concepção intermediária sustentada por Aristóteles, que concebe o intelecto diferindo do sentido. A alma tem a sensação juntamente com o corpo. Aristóteles concorda com Demócrito que as operações da parte sensitiva são causadas pela impressão dos sensíveis nos sentidos, no entanto, elas são causadas não por emanação, mas por uma espécie de operação.
Esta operação não é a do intelecto que não se comunica com o corpo, pois nada de corpóreo pode imprimir-se numa coisa incorpórea, nesse caso, para se ter uma operação intelectual não é suficiente a impressão dos corpos sensíveis. Aqui é necessário uma mediação para se passar da operação da impressão dos sensíveis nos sentidos para a operação do intelecto que conhece apenas os inteligíveis. Mas como isso pode se dá, se até agora temos apenas os sensíveis? Como são esses sensíveis?
Esse intemediário é o intelecto agente, que no processo de abstração torna inteligíveis as imagens recebidas dos sentidos. O intelecto agente proporciona que se conheça de maneira imutável a verdade nas coisas mutáveis. Mas no processo de conhecimento é necessário que tenhamos um intelecto possível que esteja em potência para poder receber a ação de algum ente em ato, já que este ente em ato que é o intelecto agente, por não poder se voltar diretamente para estas imagens, ele é atualiza as imagens que estão no intelecto possível que recebe as fantasias, depois disso o intelecto agente toma estas fantasias e torna-as inteligíveis em ato.
Há uma operação da alma que divide e compõe para formar todas as imagens das coisas, mesmo as que não foram recebidas pelos sentidos. Mas como veremos esta operação não é uma abstração, mas muito se assemelha ao primeiro modo de abstração que será visto na questão 85, artigo um.
O intelecto intelige por meio das fantasias. A fantasia é a imagem do sensível captada pela alma, e formada nesta a partir dos sensíveis. Isto porque o intelecto não pode captar os sensíveis, mas somente as suas imagens, que é o que é chamado por são Tomás de phantasmas.
Pelo fato do intelecto humano, no presente estado, está unido ao corpo passivo, ou seja, que recebe paixões, só pode inteligir em ato e voltando-se para as imagens formadas na alma.
No processo de intelecção, o objeto próprio do intelecto humano, que é unido ao corpo é a qüididade ou natureza existente na matéria corporal, e é dessa natureza das coisas visíveis que o intelecto humano ascende a algum conhecimento das coisas invisíveis, nesse caso, a natureza de qualquer coisa material não pode ser conhecida completa e verdadeiramente a não ser na medida em que é conhecida como existente no particular, ou seja, numa específica qüididade.
O particular então é apreendido pelo sentido e pela imaginação, neste caso, o intelecto deve se voltar para as imagens adquiridas pela alma que se vale dos sentidos e da imaginação. É dessas imagens que o intelecto observa a natureza universal existente no particular.
No caso do conhecimento das coisas incorpóreas, são Tomás nos afirma que no estado de vida presente só podemos conhecer tais coisas por remoção ou comparação com o que é corporal.
No artigo oito são Tomás nos mostra que o juízo feito pelo intelecto é impedido sim, de alguma forma ou completamente, pelos sentidos. Isto se dá porque tudo o que inteligimos no presente estado vivencial é conhecido por nós em comparação com as coisas sensíveis naturais, e sendo assim, não pode haver juízo perfeito da ciência natural a respeito das coisas naturais, se o sensível for ignorado.
Mesmo o intelecto sendo superior aos sentidos ele recebe seus objetos primeiros e principais de algum modo do sentido, sendo assim o juízo do intelecto pode ser impedido quando os sentidos estão bloqueados para receber impressões e atuar sobre elas.
O artigo 1 da questão 85 explicita melhor como o intelecto intelige, ou seja, pensa, as coisas materiais e corpóreas por abstração das imagens.
Para melhor entender como isso se dá, devemos saber que para são Tomás existem três graus de capacidade cognoscitiva.
O primeiro é o modo de conhecimento que se dá por meio do ato dos órgãos corporais, do sentido, e o objeto de seu conhecimento é a forma que está na matéria corporal. A capacidade de conhecer referente aos sentidos, chamada potência da parte sensitiva, é cognoscitiva, ou seja, conhece apenas os particulares, devido conhecer apenas a matéria, e a matéria é princípio de individuação, ou seja, daquilo que faz algo ser singular.
O segundo grau é o que tem como objeto a forma sem a matéria. Tanto o primeiro quanto este grau de cognoscibilidade são reportados ao modo de conhecer dos seres humanos. Esse segundo grau se explica pelo fato de a alma humana ser forma do corpo, e nesse caso ela conhece a forma existente na matéria corporal não como no primeiro grau, onde se conhece a forma na medida em que esta está na matéria, mas a partir da forma conhecida pelo sentido, o intelecto toma esta forma e a abstrai. Nesse caso, o intelecto humano abstrai o material e corporal não diretamente da matéria, mas a partir das imagens obtidas pelo sentido. É desta forma que o homem conhece alguma coisa imaterial, e se for o caso pode se elevar às realidades puramente imateriais.
O terceiro grau se refere ao conhecimento dos anjos, mas este grau não pertence ao processo de abstração por isso não será analisado por nós.
Diante do que foi dito, Tomás chega à conclusão de que existem duas formas de abstração. 1º. A modo de composição e divisão. 2º. A modo de consideração simples e absoluta.
No primeiro modo são Tomás nos diz que acontece quando inteligimos algo que não está em outro, nesse caso temos a composição, ou é separado dele, ou seja, a modo de divisão. Vejamos que nesse caso não temos uma operação da alma da composição e divisão, mas apenas uma forma de se considerar o que inteligimos por composição ou divisão.
O segundo caso acontece quando inteligimos apenas um, nada considerando sobre o outro. Nesse caso, já que só se conhece uma coisa sem compará-la com outra seja compondo-a ou dividindo-a temos um conhecimento simples e absoluto.
Esses dois modos de abstração são considerados por alguns autores, no nosso caso Landim, como abstração precisiva (no primeiro modo) e não-precisiva (no segundo modo), apesar de Tomás de Aquino nada falar sobre isso. Mas porque Landim chama estas duas formas de abstração assim?
Para Landim, a abstração precisiva exclui o princípio de individuação, a matéria que singulariza a forma, mas será que as coisas são assim mesmo?
São Tomás usa o exemplo da cor no corpo colorido, no caso a fruta, para mostrar que no primeiro caso de abstração, ao dizer que a cor não está no corpo colorido ou separada dele, o autor de tal afirmação erra quando ao compor e dividir a cor da coisa colorida em sua singularidade separa uma da outra dizendo que a cor não está na matéria. Da mesma maneira, o intelecto seria falso se abstraísse a espécie do ente material singular, de tal modo que não inteligisse que ela não é na matéria como acontece no caso do platonismo. Portanto, a falsidade acontece quando no primeiro modo de abstração, quando abstraímos a espécie da matéria, ao ponto de sermos levados a afirmar que a espécie subsiste separada da matéria, pois a espécie da coisa natural não é apenas a forma como diriam os platônicos. Na verdade, aqui não existe nada dizendo que a matéria está excluída, mas simplesmente que neste modo de abstração somos levados a concluir que a espécie subsiste separada da matéria, mas no processo de abstração em si, a matéria não está excluída.
Para Landim, o segundo modo de abstração é o da abstração não-precisiva, que consistiria em não excluir o principio individuante. Já sabemos que em nenhum dos casos, o principio individuante, ou singular está excluído, no primeiro caso ele é considerado como separado da matéria. E no segundo caso?
O segundo modo de abstração é o correto porque, assim como a cor da coisa material, a fruta, pode ser considerada em si mesma, sem considerar a fruta em si, a espécie das coisas materiais pode ser considerada sem os princípios individuais que por sua vez não pertencem à noção de espécie. É aqui que se abstrai o universal do particular, ou seja, a espécie (universal) das fantasias (formas dos entes particulares adquiridas pelos sentidos), pois o inteligido está no que intelige imaterialmente, ao modo do intelecto, ou seja, da espécie inteligível, e não na forma material, ao modo de fantasias. Realmente, aqui o principio individuante não é excluído, entretanto, estes princípios individuantes não se referem a matéria em si, mas as fantasias dos singulares.
Outra questão se refere a se a matéria é parte da espécie. Nesse caso, entramos no problema sobre a abstração da matéria.
Para melhor se considerar o problema, devemos entender que para Tomás existem duas maneiras de se considerar a matéria. 1ª. Comum. 2ª. Designada ou individual.[1]
A matéria comum seria, por exemplo, a carne e o osso, e a individual esta(s) carne(s) e este(s) osso(s).
A abstração é feita a partir da matéria sensível individual, mas não da matéria sensível comum, isto porque a espécie só é abstraída do ente humano particular sensível (dotado de carnes e ossos singulares) e não das carnes e dos ossos que seriam referentes a outras espécies de animais, e não somente aos seres humanos, isto é, ter carnes e ossos não implica pertencer à espécie humana, mas abstrair das carnes e ossos particulares de um ente humano leva sim a conhecer a espécie humana a partir da matéria singular e não da comum.



[1] Chamada por alguns de materia signata por causa do termo latino.

Crítica de Sartre ao eu puro de Husserl

INTRODUÇÃO

O objetivo de nosso trabalho é analisar a crítica[1] que Sartre faz à Husserl[2]em sua obra A Transcendência do Ego. Ele visa principalmente a obra Idéias I de Husserl, onde o fenomenólogo alemão teria abandonado a boa fenomenologia, e colocado o Eu mesmo após a redução fenomenológica. Em particular nos deteremos no parágrafo 57 de Idéias I onde achamos que melhor Husserl explicita o eu puro visado por Sartre.
Procederemos a exposição comentando as partes A e B da parte I de A Transcendência do Ego, e enquanto o texto é comentado veremos qual é o posicionamento de Husserl em Idéias que é criticado por Sartre. Portanto, nosso método é o de contrapor os ambos os textos partindo do texto crítico (o de Sartre) para o criticado (o de Husserl).
CRÍTICA DE SARTRE AO EU TRANSCENDENTAL COMO CONCEBIDO POR HUSSERL
Sartre de saída expõe o seu objetivo na obra que é mostrar que o ego não está nem formal[3] nem materialmente na consciência, mas está como um ser lá fora no mundo é um ser do mundo, como o Ego do outro. Mas o que é este ego do outro, este ser no mundo? Nosso trabalho não chegará nesse ponto, mas certamente ficará estabelecido que para Sartre o ego é passível de ser analisado, mas não como um puro transcendental, mas como um elemento fenomênico dado a consciência mas que não possui uma realidade substancial.
Começando com o ponto de vista kantiano que afirma que apesar do eu penso ser necessário como um acompanhamento das nossas representações, para Sartre isso não significa que um eu de fato habite a consciência. Para o filósofo francês, a base do eu penso kantiano era apenas uma condição (fixar isso, o condicional) que possibilitava considerar a minha percepção e meu pensamento como meus. Ao interpretar Kant, Sartre postula que o filósofo de Königsberger ao dizer que “o eu penso deve poder acompanhar...”, considerava que o “deve” estaria simplesmente indicando que poderiam existir momentos da consciência sem “eu”. Além disso, pensar num eu habitante da consciência a partir de um condicional de possibilidade seria passar de uma questão de direito para uma de fato. Sartre coloca isso magistralmente ao dizer “O Eu Penso deve poder acompanhar todas as nossas representações, mas ele as acompanha de fato?” (T.E., I, A, p. 184).
Abandonando as interpretações[4] que os neokantianos deram ao problema do “Eu penso”, Sartre passa às considerações de Husserl. Para Sartre, somente a fenomenologia estaria em condições de resolver o problema do eu de fato. Por quê?
Em primeiro lugar, a fenomenologia seria um estudo científico, logo, não somente uma análise crítica da consciência. Se eu passo da crítica kantiana para a cientificidade certamente tenho um ganho considerável, saio do terreno da probabilidade, da especulação para o da certeza, do fato. Mas isso não basta, não basta dizer que a fenomenologia é uma ciência, tenho que prová-lo. Sartre o faz ao descrever a base do método fenomenológico, a intuição. É pela intuição que Husserl fenomenólogo nos põe diretamente na presença da coisa, não de postulados sobre a coisa que se dá, mas a coisa em si, o fato. Mas como chegar ao Eu de fato?
epoché, ou seja, da redução fenomenológica, seria o método que nos conduziria ou não ao Eu Puro. Husserl não encontra mais simplesmente a consciência como um conjunto de condições lógicas como no caso de Kant, mas chega à esta consciência de fato. O que resta, portanto, por meio da “redução” é uma consciência no mundo, uma consciência constituinte, esta consciência aparece como um “eu” psicofísico, é neste ganho fenomenológico de Husserl que Sartre se apoiará para criticar o próprio Husserl.
Esta consciência não é de maneira nenhuma um Eu puro (transcendental) que seja estrutura da consciência. Há uma diferença colossal entre um eu que não é de maneira nenhuma um eu puro e sim uma produção sintética e transcendente da consciência para um eu em si, um eu puro que abarque esta consciência, que esteja por detrás dela como sua estrutura. Esse segundo posicionamento de Husserl que é posterior ao das Investigações Lógicas e que se encontra em Idéias é que Sartre irá contestar.
A fenomenologia para Sartre não tem necessidade de recorrer a um eu unificador e individualizante para produzir a interioridade da consciência que se vê como consciência individual em relação a outras consciências que se veriam individualmente por causa de seus “eus”. Pela redução o que tenho é a consciência e não um eu, isso sim é fato! Disto resulta que os objetos que se dão à consciência são transcendentais, ou seja, existem em si independentes das consciências, sendo assim, são a consciências que são unas por meio do objeto, mas elas são consciências e não algum eu, nada mais que consciências. O Eu é inútil quando sabemos que é a consciência que se unifica e que a individualidade da consciência provém da natureza da consciência, é a consciência que toma para si o papel unificante e individualizante de um Eu que não existe e que é inútil.
A consciência vai tomar consciência de si ao entrar em contato com o objeto transcendente, nesse ato ela toma consciência de ser consciência desse objeto. Sartre afirma que “esta é a lei de sua existência” (T.E., I, A, p. 188), aqui ela apenas consciência se ser consciência de seu objeto que está fora dela, mas ela neste primeiro ato ainda não é consciência refletida. O eu então aqui não é objeto já que ele teria que ser interior por hipótese, ele não poderia estar fora da consciência, o que está fora da consciência aqui não é o eu e sim o objeto. Se o eu fosse posto ele seria opacidade fechado em si e impediria a definição da consciência como um não substancial que ao tomar consciência de si é plena translucidez, abertura para o transcendental. A imagem de uma opacidade sugere a substancialidade do eu, enquanto a translucidez da consciência sugere a sua dimensionalidade, sua abertura.
Para Sartre, Husserl ao postular o eu puro eleva este à ordem de mônada. A consciência, sendo consciência do eu torna-se pesada, opaca, mensurável, substancial. Perdem-se assim, para Sartre todas as conquistas da redução fenomenológica. O máximo que se pode obter por meio da fenomenologia é um existente relativo, ou seja, um objeto para a consciência, jamais um eu puro.
O cogito kantiano é condição de possibilidade, enquanto o Cogito de Descartes e Husserl é uma constatação de fato (p. 190), o próprio Husserl diz que “na reflexão, toda cogitatio efetuada assume a forma explicita de cogito. Será que ele perde essa forma, quando praticamos a redução transcendental?” (HUSSERL, 2006, p. 132)[5]. A resposta é não. Mas a pergunta de Sartre que se põe é: onde aparece o eu quando apreendemos o nosso pensamento, esse fenômeno de onde “surge” o eu seria o que garantiria de fato uma afirmação que era somente de direito em Kant. Sim, Husserl passa do direito ao fato “Toda cogitatio ao menos em principio, pode variar, vir e ir... O eu puro, em contrapartida, parece ser algo necessário por principio e, enquanto absolutamente idêntico em toda mudança real ou possível dos vividos” (HUSSERL, 2006, p. 132), e termina acrescentando “na linguagem kantiana:‘O ‘eu penso’ tem poder de acompanhar todas as minhas representações’” (idem). Mas as coisas se dão realmente assim?
Para questionar esta postura, Sartre começa analisando o Cogito em sua profundidade, Husserl também o fez em sua obra, aqui a contraposição fica clara. A consciência que está refletindo precisa de uma consciência reflexiva. No ato de reflexão a consciência tem consciência de ela, consciência, ser reflexiva. Sartre afirma que no caso do Cogito a consciência não toma ela própria, por quê? Porque a única coisa que a consciência que está refletindo põe é o ato de reflexão e não a si mesma, ou seja, a consciência que reflete o ato de reflexão. Portanto, não existiria uma consciência que se reconhece como eu no ato da reflexão, o Cogito cartesiano e... husserliano está descartado.
Não há eu na consciência irrefletida tb. Sartre se vale da descrição de um fato da consciência irrefletida para mostrar que os dados desta não se opõem ao da consciência refletida, nos dois casos haveria o eu se tomássemos como certo ocogito, pois na consciência irrefletida, ao recuperá-la pela memória eu poria nela um eu. Nos dois casos a natureza do eu é duvidosa, pois a natureza da reflexão será sempre presente e modifica segundo o próprio Husserl a consciência espontânea. Não há eu no plano irrefletido.
Para nós, a pergunta fundamental de Sartre é posta a partir dos ganhos fenomenológicos obtidos até agora: “o ato reflexivo apreende com o mesmo grau e da mesma maneira o Eu e a consciência pensante?” (T.E., I, B, p. 194). Pergunta que colocando a possibilidade de um Eu, se ele existe ele é apreendido no mesmo grau e modo da consciência que pensa?
Eis o que diz Sartre sobre isso: “O Eu não se dá como um momento concreto, uma estrutura perecível de minha consciência atual. Ele afirma, ao contrário, sua permanência para além dessa consciência e de todas as consciências” (idem). É exatamente o que diz Husserl com outras palavras:

“depois que executamos essa redução, não encontramos o eu puro em parte alguma do fluxo de diversos vividos que resta como resíduo transcendental, nem como um vivido entre outros, nem como parte própria de um vivido, nem surgindo e desaparecendo com o vivido de que ele seria parte. O eu parece estar ali de maneira constante[6]e até necessária” (2006, p. 232).

Sartre completa dizendo que este tipo de existência é mais próxima do modo de existência das verdades eternas do que da consciência.
Em seguida, numa esclarecedora análise, Sartre mostra que existe uma diferença fundamental entre o Eu e o penso. Descartes passou do penso (o cogito) que se refere ao estado de consciência pensante para o de Substância pensante (o Eu, o Ego sum). Para Sartre Husserl merece a mesma censura que Descartes já que ele (Husserl) reconhece no Eu uma transcendência especial que não é a do objeto, já quer todo objeto que cai sob o pensamento, sob a consciência pensante é transcendente. Eis aqui a questão em toda a sua crueza, o fato de Sartre compreender esta consideração de Husserl, somente indica que este último se deixou levar pela já antiga postura de colocar o ser pensante humano como algo superior de alguma forma ao objeto[7], identificar a consciência do ato reflexivo como Eu. É com razão que Sartre se questiona: “como explicar o tratamento privilegiado do Eu se não graças a preocupações metafísicas ou críticas que nada têm a ver com a fenomenologia?” (T.E., I, B, p. 194). Eis, portanto, o fato, Husserl se afasta da fenomenologia e volta-se para a metafísica clássica e o criticismo kantiano. O Eu é posto aí mesmo que a fenomenologia não o ponha, o que ela põe é simplesmente o fenômeno. O Eu como transcendência, como aquilo que escapa ao fenômeno dado aí deve cair sobre a epoché, se cai sobre a redução fenomenológica o Eu não resiste. O Eu consequentemente deve ser posto como um transcendente.
Na reflexão o Eu não aparece como consciência refletindo, mas por meio dela em seu ato de reflexão. Para Sartre, quando dizemos Eu ao estarmos no cogito dizemos muito mais do que sabemos já que o Eu seria uma realidade opaca que necessita de mais desdobramentos. Outro problema é que ele se manifesta como fonte de consciência quando na verdade somente a consciência pode ser fonte da consciência. Agora, coloquemos a hipótese de o eu fazer parte da consciência, nesse caso haveriam dois “eu”, o da consciência que está pensando e o da consciência pensada.
Portanto, na conclusão que Sartre faz da parte B, ele conclui que ao analisarmos fenomenologicamente o eu, vamos concluir que ele certamente é um transcendental, mas que no cogito é tomado por detrás da consciência reflexiva, está é uma atitude inadequada à fenomenologia já que o Eu tomado desta forma nunca será conhecido fenomenologicamente, o que, aliás, não pode se dá já que o que conheço é apenas a consciência reflexiva. A conclusão geral nas palavras de Sartre é a seguinte:
“O Eu transcendente deve cair sob o golpe da redução fenomenológica. O Cogito afirma demais. O conteúdo certo do pseudo ‘Cogito’ não é ‘eu tenho consciência desta cadeira’, mas ‘há consciência desta cadeira’” (T.E., I, B, p. 196). O eu não pode ser posto de saída, o que temos de saída é a consciência.
BIBLIOGRAFIA

HUSSERL, Edmund. Idéias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica.2ª edição. Tradução: Márcio Suzuki. Aparecida:Idéias & Letras, 2006 (Coleção Subjetividade Contemporânea).
SARTRE, Jean-Paul. A transcedência do ego: esboço de uma descrição fenomenológica. Tradução Alexandre Carrasco. In Cadernos Espinosanos n° 22, pp. 183-228.


[1] Entenda-se o termo crítica no sentido mais vulgar de contraposição e não no sentido particular que Kant lhe concedeu como análise crítica da possibilidade, da origem, do valor e das leis do conhecimento humano. É bom ter em mente esta distinção já que ao longo do texto o termo crítica é aplicado nesse sentido quando o posicionamento de Kant está em questão.
[2] Em primeira instância, já que a crítica alcança Kant de algum modo. Entretanto para Sartre nem mesmo Kant põe o eu como o fez Husserl por meio do Cogito. Isso será analisado no decorrer do trabalho.
[3] Este será o posicionamento de Kant e de Husserl, a existência do Eu como estrutura formal da consciência.
[4] Que consistem em realizar as condições de possibilidade que pós Kant, Brochard, ao questionar o que seria a consciência transcendental, já coloca a questão de uma forma que a resposta seja o estabelecimento de uma consciência empírica que é um inconsciente. De qualquer forma percebe-se o estabelecimento de um Eu de fato.
[5] Não seguiremos aqui em nosso trabalho em particular o modelo de citação de filósofos clássicos para facilitar a leitura, além do que estamos trabalhando apenas um parágrafo, o 57, o que não precisaria ficar repetindo, nesse caso é melhor saber a página da tradução brasileira.
[6] Os negritos são meus.
[7] O que significa que ele não considera a consciência reflexiva como um objeto transcendente qualquer. O que está por trás dessa atitude de Husserl? Que necessidade ter que postular um eu e coloca-lo acima de qualquer outro objeto sendo que ele é um objeto passível de análise como qualquer outro?
 
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